Música da caixinha
Pedi um pastel de carne seca. Uma delícia, mas logo na segunda bocada (porque a fome era tanta) percebi o excesso do sal, o que atrapalhou outra parte do meu palato. Pensei e chamei a moça que me serviu e reclamei com alguma tranqüilidade do excesso do sal... Não, moço, trocamos, podemos trocar. Assim, pedi outro, um de palmito que valeu a pena. O Bar, ou melhor dizendo, o boteco bem limpo, minúsculo e cheio de deliciosos salgados, espremidinho num canto do Mercado Municipal (próximo ao Parque Dom Pedro, em São Paulo), contrastava com o cinzento do Mercado.
Dois passos para um lado, está o paraíso dos ingredientes gastronômicos dos velhos e novos ricos de São Paulo; e dois passos para o outro a fuligem do asfalto, tudo colado na Vinte e Cinco de Março (o nosso Paraguai legítimo), abrigando novos e velhos miseráveis que vivem ou simplesmente passam por ali.
Aquele boteco, pelo que pude perceber, dirigido por mãos femininas de um canto a outro, é uma espécie de porto seguro das almas esfomeadas com alguns trocados nos bolsos... (um banquete popular, a qualquer hora do dia). Mas o melhor ainda estaria por vir.
Retomando a situação que originou estes escritos... De repente ouvi um coro de vozes de mulheres, em uníssono som, como se fossem as tais e famosas lavadeiras do Rio São Francisco:
- Caixinha do moço aqui de azul, obrigadooooo!!!
Continuei a saborear meu pastel de palmito, sem entender direito aquilo, mas novamente ouvi, em alto bom som:
- Caixinha do Sr. José das Bombas, obrigadoooooooo!!!
Não... das cinco ou seis mulheres ali, nenhuma ficava fora do coral, e juntas agradeciam ao freguês colaborador. Assisti e ouvi umas quatro ou cinco vezes a cena com diferentes personagens. Me imaginei rapidamente também, como eu seria citado por elas. E como era possível, ao mesmo tempo, no mesmo ritmo, todas entrarem na música, se continuavam nos seus afazeres, sem se virarem umas para as outras... Não, não via nenhuma cauda de olho se alongando por ali. Mesmo porque o espaço exíguo não permitiria tantos rabos olhando ao mesmo tempo na mesma direção para juntas agradecerem a clientela.
Elas não tinham rabo no olho, não mesmo. Tudo era uma questão de percepção, sintonia fina de mulher, reflexos afiados, relâmpagos intermitentes. Equipe de fazer “professor” de futebol morrer de inveja e gestor de RH cair o queixo pelos seus próprios babados.
Pronto, o sabor daquele pastel de palmito comigo vai ficar impresso, mesmo sabendo do sal do outro que me deixou levemente irritado. Uma coisa apaga a outra, dependendo da delicadeza do bordado. É isso.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
Um comentário:
Uma coisa apaga a outra...dependendo da delicadeza do bordado... nao deveria, afinal te conheço, te sinto, mas vc me supreende sempre (ou quase) e adoro isso... rs
beijos
Luisa
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