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27 de out. de 2008

Os etis do keti - e o guarda-chuva que não devolvi

Chovia muito aquele dia, eu tinha ido fazer uma visitinha ao Zé Keti, ele morava na Rua Gravataí, travessa da Praça Roosevelt, e aquele dia o Zé estava sozinho, melancólico como a chuva que lavava São Paulo. Me perguntou pelo Chiquinho (o artista plástico Chico Martins, amigo em comum), o cara que me apresentara a ele..

O compositor e cantor tinha sempre à mão uma garrafa de qualquer bebida que ele chamava de pingueti, assim, botando “eti” em tudo, no final das palavras. Espécie de apropriação para carimbá-las, ao seu gosto e prazer, com a Sua marca “eti”, originado do seu Keti que por sua vez viera da expressão “quieto” - segundo ele próprio - ao apelido que lhe deram por ter sido um sujeito que nunca falava muito, ou quase nada (claro, isso em outros tempos, antes da fama que músicas como Máscara Negra lhe trouxera).

Naquele dia chuvoso, o Zé, como sempre, me mostrara mais uma de suas músicas, à base do som tirado de uma caixa de fósforos, enquanto esperávamos o frangueti que seria a mistura do nosso almoço improvisado, rapidamente, para nos matar de graça a fome. Os seus “etis” iam sendo “colados” nas palavras, como sufixos, dando-lhes um tom de galhofa e intimidade, fosse qual fosse o assunto, tudo do jeito “eti” de ser do Zé... O compositor de origem popular, experimentado na arte de compor parecia querer sempre infiltrar-se nas palavras gastas e nelas imprimir sua marca quase pitoresca e, às vezes melancólica, e delas fazer o seu próprio vocabulário, originalíssimo... Daí, o seu Keti seguia à risca a conduta éti-ca de recriar o seu reinado de palavrórios , segundo sua própria lei e ordem, e desordem. Afinal, o cara que nunca mais ficou quieto! Agora, o Keti!

Mas voltando ao frangueti daquele dia de chuva próximo da Roosevelt, o Zé, sempre muito simpático e simples, dividia tudo que tinha, fosse o que fosse e tivesse ao seu alcance... Eu não lembro direito da música nova que ele me mostrara na ocasião, mas estou certo, e lembro bem, ele dizia ser em parceria com o amigo Chiquinho. Com quem dividia outras alegrias, pinguetis, franguetis, churrasquetis, etc., etc..

Naquela mesma ocasião me “cutucou” para que eu fizesse a produção de um show (pois há muito não fazia nada nesse sentido), quando soube das minhas habilidades de produtor cultural. Saí fora, delicadamente, cheio de vergonha e assustado, porque me achava incompetente para uma tarefa daquela monta. Enfim, não captei a mensagem do artista, apenas ouvi da sua música, batucada ao vivo numa caixinha “pinheiro”, eu acho, comi da sua comida, e por fim ainda levei dele, emprestado, um guarda-chuva (que assumo), nunca tê-lo devolvido. E o cantor e compositor, se pudesse dividia até a fama, e dividia mesmo! Porque tratava a todos que chegavam perto, como amigo, sem malícia, tão puro quanto os olhos de um garoto.

Não saberia dizer como, mas perdi o contato com o ele, e tempos depois o vi num desses programas de TV, sendo entrevistado, e se oferecendo para fazer shows. Alguns anos após essa aparição na TV, veio-me a notícia da sua morte. Com isso também uma melancolia, porque, confesso agora, tive várias vezes oportunidade e condições de gravar em vídeo o compositor, ouvir tudo que ele tinha a dizer - e dizia mesmo, e não fiz. Não fiz. Leite perdido.

Só sei dizer que aquele guarda-chuva era como um pedaço do samba, um pedaço do Rio de Janeiro oferecido a mim, e eu não soube devolver com a mesma fineza, a mesma gentileza. E até onde sei, não há nenhum registro dessa sua “eti-ca”com as palavras, exceto o testemunho de pessoas daquela fase (conheço duas ou três).

Bobagem minha, a eti-ca ketiana nem precisa de mais documentação e coisas e tais, já está sacramentada em versos como: “Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar...”, ou “Eu sou aquele pierrô/Que te abraçou/Que te beijou, meu amor...” ou “Se alguém perguntar por mim/Diz que fui por aí.”. E fui.

Fora da órbita
Sorria, São Paulo: quatro anos é só um tiro de espingarda, e nem será notado pelos paulistanos. na cara.
Só no coração.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é amigo..quantas coisas deixamos de "perceber" e deixamos jogados...
beijos sua fã sempre (mesmo que distante)
Lu

Amplexos do Jeosafá disse...

Caro Cacá, e esta minha saudação já é um trava-língua, se não for um cacófato. Acho que já podemos e temos autoridade algo conferida pela experiência para chamar aquela Roosevelt de Velha Roosevetl, não? Pois é, já escrevi poema sobre ela (tá no livro ao qual o Centro Cineclubista emprestou oprestígio e ainda mais o logotipo, cê tem ele por aí em algum lugar calçando alguma cadeira manca). Essa sua crônica não gira em torno da praça, nana nina nana: a Gravataí é uma flecha apontando para o centro dela.

Sabia que meu primeiro desemprego foi nessa rua? É, eu tinha 14 anos de idade completos, não conhecia picas do centro da cidade de São paulo e fui à uma agência de empregos com uma carta de apresentação para trabalhar no Citbank, uma carteira profissional virgem e meu coração assustado com essa coisa (pra não usar um vocábulo mais seminal) de ter de arrumar emprego.

Os caras viram meu tamanho, na época menos de 1,50m, perguntaram a localização de ruas, cujos nomes não me recordo - dou a cara pra bater se não perguntaram onde ficava a praça Roosevelt só por gozação - e como eu gaguejasse e fizesse cara de assutado, meteram o pé na minha bunda.

Depois vieram outros vários desempregos e veja você, poeta que anda traindo a poesia com a crônica (pensa que ela não sabe, vai nessa!) - de tanto me madarem para frente chutando meu trazeiro, já estou fazendo o segundo doutorado na USP. Mas agora sou esperto: já viro logo o trazeiro e me posiciono para levar o chute.

Olha, poeta traidor da poesia e amásio declarado da crônica, dependendo de quem chutar e da força do impacto, posso me tornar presidente do mundo ou tornar-me o primeiro homem a chegar à lua sem foguete.

Caraca - não a caraquenha capital venezuelana, mas a interjeição catatônica - Cacá, aceite este outro cacófato com o qual encerro meu comentário: perdoname, desvei-me do assunto, pero... foi por força dos últimos impactos retagardamente sentidos. AMPLEXOS do jeosaFÁ

São Paulo, São Paulo, Brazil

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