Bahia de mim, do chão, tempo dois
Quando pisei o solo primeiro do Brasil, em terra firme para meus pés, ainda em estado, covardemente - digamos assim – judiado por um amor às cegas, por um amor mais de ouvir do que de saber, no real. Um tesão por intermédio, e nem sei se isto é possível, mas eu sinto que agora a besta da minha libido ficou boba diante da possibilidade do comer, do consumir naquele ato... Salvador estava ali, no calor dos meus pés, me recebendo estendido em luzes das 18 horas daquele último dezembro que nossos olhos podem ver, agora pouco.
Saindo do aeroporto, subitamente entrei num forno, e o carro que me levava ali do lado mesmo, em Lauro de Freitas, me embrenhava numa paisagem que aos poucos me refrescava com a janela do automóvel em movimento. Fiquei procurando na minha pele a brisa do mar. Perguntei a Velame onde estava o ele de aqui, o Seu Mar, pra que lado...
- Cacá, estamos numa baia, imagine o mar... onde você quiser ele estará, brincou comigo. E o puto continuou pisando no acelerador, com uma pressa, muito mais de um paulista do que a de um baiano. Pra que aquilo, me perguntei, queria ver, sentir Salvador lentamente, em cada partícula de vento soprado em mim, e assim eu respirava fundo do meu íntimo de Castro Alves, do meu íntimo de senhor de escravo, do meu íntimo de bugre perdido, do meu íntimo de matador de índio... Ah, o meu íntimo de Pedro Kilkerry, o meu íntimo de Jorge Amado, o meu íntimo de Tom Zé... Ah, me respire Seu Vento, que eu quero ser varrido, doido, por você!
Mas aquilo não estava nos planos e a cidade não me era aquela mesma que Luiz Orlando da Silva http://www.abcvbahia.com.br/noticias/06_0910.htm, o ilustre cineclubista baiano me dizia, e diria, ora. Assim, o passado e presente, o fantástico, o real, tudo me confundia, e eu virava um tolo de mim mesmo onde a razão virara uma formiguinha daquelas mais insignificantes. O meu guia, o meu Moisés prometido estava morto, e Velame, o substituto, digamos assim, fez o que podia e o que não podia para cumprir o nosso razoável; e Salvador, à noite, nos becos e nas luzes, poderia ser de qualquer tempo, de qualquer época, tanto fez, tanto faz. A cidade baixa, a cidade alta, as duas, as três, as mil e tantas cidades que estão numa só... Não havia tempo, minha estada na Bahia teria e teve o tempo de vida de uma mosca, e literalmente voei mirando pela janela do carro os tudos e nadas.
Os morros, as tais quebradas, os tais e os não tais que Luiz dizia, e muito mais, que nem me lembro já não seria possível, e eu ficava somente com a lembrança dele me falando baixo e calmo do lado, balançando o seu “cabelinrastafari”, a quem nunca vimos de outro jeito, sem aquelas tranças noturnas, feitas por mil mãos de África. Ah, eu já não sei, não saberia o ele queria tanto me mostrar, e com certeza não verei jamais, por mais que eu tente me explicar a quem for, não saberei dizer, nada, tão somente posso reproduzir o assim, neste:
- Cacá, quando você for a Salvador, vamos andar por lá, vou te mostrar... A Bahia é cheia de morros, cheia disso, cheia daquilo, coisa que a televisão não mostra, vai ver... quando você for, vai ver, quando você for vai ver, quando você for, vai ver quando você for vai ver quando você for...
Eu nunca fui à Bahia. Naquele tempo.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
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