Janela de hotel
Pois é, querida, você me pergunta deles, meus pensamentos, que não andam, ou se andam não têm pernas pra nada... (risos, risos). Mas falando sério, eu gostaria de viver naquele encanto daqueles dias, de revivê-los, sentir o cheiro daquela chuva intermitente caindo no chão vermelho da tua cidade e eu espiando pela janela do único enquadramento possível do que me foi dado naquele hotel... Lembra? Uma janela espremida naquele quarto, e sei, a paisagem me agradava, mas havia certa melancolia, porque depois, no dia seguinte a Capital estaria nos meus planos de volta, indubitavelmente, por uma cobrança besta do cotidiano que me expulsava novamente do certo para o duvidoso paraíso.
Lembro-me bem de uma névoa, entre uma chuva e outra depois do almoço, simulando uma manhã de brisa que já era passado. Sabe, aquele cachorrinho vira-lata que quase nos mordeu de susto na virada brusca daquela esquina da Sorveteria Suíça? Suíça... Suíça, por que será? Bom, deixa pra lá, vai. Mas aquele totó mirrado e sujo deu-nos o maior susto, até cheguei a pensar coisas. Sim, na sequência você tirou um chocolatinho (mulher sempre tem unzinho guardado) da bolsa e jogou àquele pária, que apenas cheirou, cheirou, cheirou e saiu rosnando, rosnando do nosso caminho.
Eu sei, um cachorro não é nada, nada mesmo, e a gente precisava tomar um sorvete, porque afinal o calor era imenso. E minh’alma também pegava fogo, fogo, fogo. Depois a sorveteria, os sorvetes e a lembrança do cachorro recusando um chocolate, porra.
Eu sei, ficaste muito cansada da minha visita, esgotada e por fim fiquei sozinho naquele hotel vendo a única janela espremida, me forçando naquele enquadramento parado, feito um plano de cinema à Tarkovski, e eu no meu intimo tinha pressa, muita pressa, mas o dia acabara num começo de noite de domingo bem tedioso, eu comendo um lanche na Sorveteria Suíça (ela também serve lanches), que você havia recusado por causa de umas gorduras a mais que pude provar, em pequenas e delicadas mordidas... Depois, eu tive pressa em voltar para o hotel e continuar olhando aquele cinema russo muito estranho no interior de São Paulo, num hotel mais ou menos barato e limpo. Eu fiquei muito chateado com seu cansaço, e pensei fortemente em mim, que humanos, feito nós, felizes, não deviam se cansar em atividade feliz, feliz para a alma do nosso ser de sempre.
Depois eu não sei, não aconteceu mais nada, e teve um show de música, que eu nem ouvi por acaso... Mas eu gosto de música, e não fui. Você, eu sei, não se atrapalhou e foi ouvir música, mas as coisas pra mim ficaram exaustas e novamente aquele cachorrinho me veio à memória... Definitivamente você não estava do meu lado e não havia nenhum chocolate que eu pudesse tentar agradá-lo.
Foi uma pena, fiquei triste, mas não posso fazer mais nada, nada. Preciso pensar no em mim que ando mesmo com meus pensamentos fora de tudo. Oxa.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
2 comentários:
Bom... Nunca falamos claramente sobre meus motivos, você ficou livre para concluir que eu teria "cansado da felicidade"!
Bom... Digo-lhe que esta não é uma conclusão que se aproxima na realidade dos fatos, daqueles fatos!
Bom... Lembro-me de um tempo atrás, de um momento que antecede aos seus relatos, ainda no interior, em um hotel talvez mais barato e nem tão limpo! Sua imagem permanece em meus pensamentos como uma fotografia! Cabelos encaracolados, palavras doces, olhar sedutor... Apaixonante!
Bom... Mas voltando ao hotel mais ou menos barato e limpo, se me lembro bem você me fez uma pergunta, e esta sim poderia lhe aproximar da verdade dos fatos, "Quais homens você andou, menina?", espantava-se por minha inocência...
Bom... Com você tudo era novo, ou diferente, não estava cansada e sim assustada, você estava certo, eu era apenas uma menina! Talvez seu fogo tenha me queimado! Eu só precisava de um tempo para organizar meus pensamentos...
Bom... Foi muito bom e feliz a nossa estada naquele hotel mais ou menos barato e limpo! Para mim ao menos!
... parece-me (talvez por coincidendia) que sempre irá exitir uma janela entre nós,
... lembro me agora de uma janela em um lugar que nada aparece com um hotel, mas serviu-lhe de pouso por uma noite inteirinha... serviu-nos tambem, para alguns momentos de felicidade!
... não me cansei da felicidade!
Postar um comentário