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17 de abr. de 2012

O homem que chegou primeiro

Eu cheguei para cortar o cabelo na mesma moça de sempre, no mesmo salão da Augusta, do baixo Augusta, para o exato de ser. A morena bela, dona da tesoura que me faz a cabeça me sorriu, mas antes de dizer que estava ocupada com o outro cliente, este mesmo se adiantou também sorrindo e disse:

- Cheguei primeiro, vai ter que esperar...

- Ah, sim, sem problemas.

Foi nisso que pude notar quem era o cara que havia “chegado primeiro” na cadeira da minha morena; que não era, não era minha, não era, e é e era somente a minha exímia cabeleireira, sempre. Sim, o homem com uma simpatia contida continuou me sorrindo, e aí então eu disse, ah, é você, claro, sendo você pode ficar, e pensei: este salão anda mesmo muito bem frequentado... Só não saberia por que eu estava ali, olhando o homem com aquela sua fama imensa , meio constrangido, sim, porque havia chegado antes de mim, com uma diferença de um fio. De cabelo.

A morena, a da tesoura, a sensual, a tal do sorriso e de outras simpatias tentava saber dele, se não me conhecia, pois ora, lhe dizia, de mãos abertas co’a tesoura, este meu amiguinho aqui também é de cinema, sim; ali ó, tentava lhe mostrar o outro lado da rua onde ficava o sobrado que abrigava o Centro Cineclubista de São Paulo... Bobagem, ele talvez nunca tenha entendido direito o que ela tentava lhe dizer, e eu cortei-lhe o assunto (com se também tivesse em mãos uma tesoura), me exasperando um pouco, tímido, desconcertado também - afinal melhor fosse que ela ficasse lá cuidando, sossegada daquela cabeça do cinema, porque afinal, a vida lhe tinha pressa
– e fui saindo.

No combinado de sorrisos, meu e dela, que ficamos, foi que eu voltaria dali a algum tempo de minutos. Voltei e o ilustre cliente da minha amiga cabeleireira já havia deixado o salão, no que disse a ela da suma importância de agora então, mais do que nunca deixá-la que pusesse as mãos em minha cabeça para, como se dele transpusesse um pouco da sua celebridade, do seu sucesso, ora. Um minguado cineclubista que eu era e fui, e tento ser ainda que de memória, diante daquele personagem (mais do que personalidade) do mundo do cinema ali, numa Augusta ensolarada, de uma segunda ou terça-feira à tarde, sem escuro, sem nenhuma mágica de luz, com a mais pura verdade dos mortais desse mundo de carne e osso, finitos! Leon Chadarevian em Alepo, ou simplesmente Leon Cakoff, o homem que criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo sentava na mesma cadeira que eu... Para se deixar cortar os cabelos.

E depois, passado algum tempo, em minutos, perguntei a ela se sabia onde andava passando a tesoura, em que cabelos, em que cabeça, o que me sorriu, simplesmente: ah, sim, ele mexe com cinema, e sempre me arruma convites, e eu disse: ah, sim é verdade, esse cara mexe com cinema. E tem uma cabeça ótima para se cortar cabelos! E sorrimos juntos, ela e eu, sem saber por que tentávamos sorrir, talvez cada um entendendo o que fosse, o que queria, e ele era realmente um homem de poucos cabelos, bem fácil de se cortar.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/989761-critico-leon-cakoff-morre-aos-63-anos-em-sp.shtml

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São Paulo, São Paulo, Brazil

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