Naomi Campbell agora é minha vizinha (interina)
Eu coloco a mesa de jantar com um espumante que nem saberia descrever o nome, de tão chique e difícil de ser lembrado. Duas taças especiais, logicamente emprestadas por uma amiga que foi secretária de uma socialite, vendedora de bons modos. Claro, antes coloco a toalha de mesa, uma que comprara em um dezembro passado que nem lembro qual, para uma virada de ano que não houve. (Digo assim por que a visita deu o cano mesmo, pois seu namorado oficial voltara antes do previsto... E eu dancei!) Toalha tão bonita e de singularidade incomparável. Volto à cozinha e termino de preparar o molho de tomate, enquanto o espaguete termina de cozinhar. Preparo o binóculo num tripé improvisado e faço sinais com as mãos, confirmando os preparativos para o jantar. Tudo certo, pela hora da vida. Oxalá, que assim seja.
Eu moro na Rua Barata Ribeiro, bem do lado do amigo Jedson Carta, ator de primeira que poderá testemunhar este meu relato, pois estamos, os dois, muito próximos do Hotel Sírio-Libanês... Ops, Hospital, quero dizer. Da janela do meu apê eu posso vê-la, apesar de combalida, mas esbelta, delicadamente posta numa cama que sobe e desce, bastando apenas um sopro seu ou de um dos doutores que lhe assediam a todo tempo dessa sua vida ali.
A bela, apesar de enferma, continua a mesma serpente luminosa, pronta para ofuscar holofotes inteiros de todos os tempos. Me aproximo do binóculo e vejo-a de forma capenga, eu diria, mas de um jeito que paparazzo nenhum neste mundo poderia vê-la. Não mesmo – agora, se me desse um click, com as contas todas vencidas que ando, seria capaz de ligar para uma Folha ou Estadão e vender a minha janelinha especial. Mas agüentei firme; não, não, minha privacidade não venderia por dinheiro nenhum. Depois, aproveitar daquela situação seria mesmo muito injusto com tamanha celebridade ao meu dispor, digo: ao dispor dos meus olhos pregados num binóculo.
O jantar está esfriando, eu tento dizer com as mãos, sinalizando feito um maluco para ela e quem mais quiser ver... Ela, claro, continua imóvel na sua cristalina beleza, delineada (para não dizer estirada) no seu leito branquíssimo de hospital, talvez se imaginando longe de tudo isso. Digo: da imprensa que não lhe deixa um só instante, dos fãs tresloucados, das sedentas enfermeiras e enfermeiros, agora proibidos de freqüentar o seu quarto de enferma... Realmente um desespero, especialmente depois do boato (que li não me lembro onde) do mimo que seu namorado brasileiro lhe fizera ao custo irrisório de 250 mil reais. Uma ninharia, não pensando bem.
Por outro lado, eu fico por demais impaciente, na minha quase intimidade com a ilustre vizinha (interina) que parece mesmo impassível sob todos meus procedimentos. Eu que preparara toda uma festa, delicadamente confeccionada com o maior esmero desse mundo, posto uma mesa e uma toalha ímpar, de tão bela! Um espumante com taças escolhidas a dedos, binóculos de longo alcance, capaz de trazer e levar aromas a longas distâncias. Algo intraduzível, tudo pensando na bela, na incomparável, na ilustre, naquela que esgotaria todos os adjetivos da nossa língua brasileira. Enfim, a escravidão em novo formato estava a postos. Revogada todas as disposições em contrário.
Que poder é esse de beleza que se vende a todo instante nas várias mídias, cuja perfeição se escorrega do fascínio e chega a certo fascismo? (Algo como se fosse um lapso de digitação deste que aqui escreve) Arre! O jantar esfriou, esfriou, e eu já penso em desligar o binóculo, desistir de vez do jantar, do espumante, das taças, da toalha, do molho, do espaguete...
Antes que eu esqueça: vi na TV uma notícia vinda do norte do país, acho, onde pelo menos três mães aflitas com seus bebês muito doentes, esperavam por vaga. O hospital que só tinha vaga para vinte recém-nascidos em UTI, já estava com quarenta; ou seja, vinte além da sua capacidade, e se recusava a qualquer tipo de atendimento. Todavia, portanto, no entanto, mas, porém aquelas mães choravam desesperadas diante das câmeras das TVs, clamando para que seus pequenos não tivessem (como em muitos casos) a mesma sorte de outros tantos... Duas das mulheres ali, já esperavam há muito na porta daquele hospital. Isso tudo depois de terem viajado pelo menos sete ou oito horas de barco com seus pequeninos.
Não, eu não reclamaria ao papa, ao menos desta vez, do espaguete frio e do espumante quente, sem nenhuma espuma ou graça que fosse.
P.S.: A modelo inglesa Naomi Campbell deixou o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, na última sexta-feira (29/02), conforme publicações em vários jornais, depois de ser submetida a uma cirurgia “não-revelada”.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
6 comentários:
Não desista do jantar, esquente novamente o molho, o espaguete, coloque novamente o espumante na geladeira... Algumas maes vao precisar se alimentar para aguentarem suas esperas...e algo para esquecerem suas perdas...
Mas ninguem a nao ser voce vai ver...os outros estaram preocupados em saber se teremos beleza novamente desfilando pelas passarelas... nosso espelho nos condena...olhemos entao o desfile...
Olha..vai começar..ai vem ela..Linda como sempre...pra que se preocupar deixa o resto pra depois...
Adorei..como sempre!
beijos grandes
Não desista jamais do jantar. Ainda haverá uma nova oportunidade de vc poder usar as taças especiais e beber de um espumante que apesar de nãosaber descrever o nome; sua boca saberá na hora certa se deliciar com ele. Mas o que importa tudo isso, se lá fora a desigualdade é obvía. se vivemos numa sociedade onde travamos uma guerra para não nos tornarmos tb consumista e sensacionalistas com a mídia. Qantos Joãos e marias se hospitalizaram e sofreram uma intervenção cirugica? E ninguém jamais se preocupou em divulgar na mídia; a não ser em épocas de eleição. Nenhum médico, nenhuma enfermeira foram proíbidos de entrarem no quarto,(eles não entravam por vontade própria).
E nenhum binóculo oculto também não se preocupou em bisbilhotar o enfermo pra ver se algo mudou em seu rosto com o tratamento recebido.
Também esse binóculo oculto estava preocupado em estudar a Constituição Brasileira do Código Civil pra ver se encontrava parãmtros na lei que o absorvess de um crime q não havia cometido; e que a mãe da vítima era sua testemunha de defesa. Ficou 19 anos preso. Como ele poderia preparar uma mesa, com taças especiais. Fugir da sua realidade e observar a Naomi Campbell? Ele não tem nem casa. Ela bela sim. Mas sozinha de si.
Enquanto no norte do país mães deseperada gritam pela sobrevivêcia de seus bebês porque não há UTI para eles. E uma celebridade está lá sendo atendida e com suas exigências...
A lei existe. Não existe é ética e justiça para os menos favorecidos.
Olhe mais ao seu redor. Não reclames mesmo! Você é no minímo alguém que sabe expressar o seu valor e fazer valer.
Continue, vale a pena. Mesmo que no caminho pareça estar sozinho...
Abraços,
Solange
Que crônicas lindas, hein, Cacá? Gostei das duas. E essa sobre a Naomi Campbel, que contraste tanto aparato no hspital sírio Libanês, enquanto as mães que não têm o dinheiro que a Naomi tem, se desesperam nas filas dos hospitais...
Bela crítica! Parabéns!
Risomar Fasanaro
Cacá, antes de mais nada (e com o perdão do clichê...) vida longa a essa sua ação virtual! Já tinha lhe falado pessoalmente de que gostei muito do li até agora. Bem, agora mesmo: essa sua “brincadeira” com a modelo (inglesa, não é?) Naomi Campbel é uma lição de civilidade e tolerância genial. Digna de figurar “em todos os meios e horários nobres disponíveis.”
Portanto vamos ao boca-a-boca (tb., né...!) desse blog de primeira.
Ah!, em tempos de uma indisfarçável discriminação racial a uma autoridade, a ex-Ministra Matilde Ribeiro, e ao próprio governo Lula (pois, com perdão da palavra às cagadas todos estão sujeitos..., mas a democratização política, econômica e cultural às classes mais pobres nesses seis anos, é evidentemente superior!), sua poética crônica faz valer que o amor platônico (ou da vida real) não tem cor.
Por fim, minha solidariedade às mães nortistas.
Felicidades, e um abraço!
Rui
Ivo Branco -
Enviada: quarta-feira, 5 de mar�o de 2008 2:21:06
Responder-Para: ivobranco@uol.com.br
Para: artsempre@hotmail.com
caro Cac�,
vc deveria colocar essa verve liter�ria, ora jocosa, ora ir�nica, ora c�ustica,
a servi�o do nosso cinema, t�o carente de roteiristas que tenham um
dom�nio da l�ngua e boas id�ias pra transformar em filme. ponha esse
talento pra funcionar no cinema brasileiro, contando hist�rias com vem
fazendo por aqui. sem papo cabe�a e elucubra�es filos�ficas. afinal, uma
boa hist�ria rica em conte�do e observa�es humanas, contada com sensibilidade
pode resultar em bons filmes. que o diga Dostoievski, um dos seus �dolos nos
livros geniais que escreveu.
forte abra�o,
Ivo
ah, acho que assenhorear-me de algumas frases suas daquela cr�nica
Ningu�m pode ser suspeito por tentar sorrir Posso? mas n�o pagarei
royaties�
e mande o meu abra�o para a Naomi, viu?
Interessante essa inspiração vinda das notícias dos jornais. essa Naomi Campbell, está demais nessa nova imagem de "arroz-de-festa" aqui no Brasil.
Valeu Cacá!!!
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