Geografia do meu berro
Os olhos miravam qualquer coisa além da luz fria da manhã de segunda-feira. A qualquer momento meu corpo desabaria em direção indeterminada, como prêmio por uma espera minguada de quatro dias de vida, passada por aqui... Eu sei, foram apenas quatro dias e você já me cobra como se o mundo todo tivesse parado em torno da lâmpada, querendo tirar as mariposas do foco e descentralizar a luz. Eu sei.
Tenho tido muita calma diante das sombras que são tuas noites grudadas em mim, repletas de palavras de uma língua que eu nunca inventei. O amor é tanta coisa! Tanto quanto uma incólume taça de vinho, extinguindo-se aos poucos no vapor dos nossos dias... Eu berro, berro porque o cuspe é coisa mais feia do que os ares inflados de um pulmão em gritaria. Eu berro.
A rua que for dar em nós, passa-se fazendo como um bordado de engenharia contemporânea... Uma geografia que já não vai existir daqui a alguns anos; uma rua, um mundo e meus dedos que nunca ficaram em riste, riste... Mas batem, batem, batem. Com toda força; com toda força. As teclas.
Fora da órbita
O meu olho esquerdo foi quebrado como se quebra um ovo na pequena (será mesmo?) cirurgia em que fui submetido recentemente. Claro, não cozinhou e nem fritou, ficou aquela coisa mole e turva, quando botei os pés na rua e não puder ver direito com esse OVO o cinema da vida passando, intransitável.
O meu guia – porque a esta altura, já me considerava metade cego mesmo – que atendia por Homero, iria iniciar a nossa odisséia em direção ao local do meu primeiro dia de repouso pós-operatório. Eu, o paciente, deveria segui-lo obstinadamente até o outro lado da Cidade... Mesmo lacrimejando muito, prometi não chorar por dentro, mesmo se atacado fosse por dor externa e repentina, diante deste iluminado Homero. Não, não fui atacado e, chegamos ilesos, prontos para outras batalhas.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
Um comentário:
Vale a pena quando a alma não é pequena...
Somos gerados na sombra e choramos quando somos arrancados dela. Nascemos cegos; e não há cirugia humana que tire dela ou guia "Homero", que nos conduza ao caminho "certo", a não ser nós mesmos. Mas quando chega a hora de retonarmos á ela aí choramos direito e deseperadamente para não irmos. Porque descobrimos que a vida é uma caixinha de inventos e que traz dentro dela o amor que não inventamos mas que deveríamos olhar com os olhos da alma e não simplesmente deixá-lo voar como uma mariposa por nós... Continue berrando a todo pulmão.
Bjs,
Solange
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