A voz por um fio
Recebo um telefonema por engano. A voz feminina é doce e faz bem. Doce é um jeito de se falar, a saber que não é possível uma degustação. O meu relógio, dentro do peito, esquece o tempo e finge não bater direito na cabeça de cada ponto de hora. A voz suave, como num filme francês, vai me costurando a alma. E nisso fico mirando, tentando recorrer a uma matemática para resolver uma equação.
Eu posso reconhecer a minha fragilidade diante do desconhecido. Como se houvesse possibilidade de antever… Uma espécie de ensaio daquilo que sabemos ser tudo improviso. É a vida.
Moças belas ou feias, moços também, se arrumam, passam cremes, perfumes cheirosos, vestem grifes ou não vestem nada mesmo, mas vestem- se de olho no relógio. Vai haver um encontro. O espelho entra como diretor do ensaio. Modela, arruma, corta fala, conserta a máscara, desmonta a cena, remonta, manda fazer de novo… Enfim, e lá na hora H tudo tem que ser improviso. É a vida. Não dá pra combinar antes.
Daí, onde vão parar as vozes tão conhecidas, ensaiadas, amadas e distintas pelo fio de telefone? Ao menor deslize botamos tudo a perder. Se a imagem destoar muito do imaginário… ah, colega! Onde botar a nossa voz com aquela simpatia e calma? A beleza das palavras e suas curvas de boquinhas frescas e molhadas, dos verbos e todo aquele emaranhado de adjetivos mil vezes dito. Os jogos de idéias, palavrões sutis e engomados com a saliva mais doce da nossa alma. Nesse nosso QG somos imbatíveis! Haja o que houver nenhum de nós se sentirá invadido… Depois, não. A realidade não é normal. Se pensarmos que as teorias todas são um caminho para a compreensão…
Buscamos ganhar o jogo. Como cavalos de corridas. Estamos amparados na lógica do poder… Felizmente, na maioria dos casos, para o bem. Afinal, somos dele e queremos isso. Ainda que o mal povoe as mentes e estrague a muitos, como peixes se estragan nos grandes mercados.
Aquelas caras e bocas das conversas a fios, treinando a nossa simpatia... Somente nossa: a minha voz diante da sua. Agora, frente a frente, ancoradas na paciência e no limite da crueza da matéria. Pois, um corpo justifica a voz, as atitudes justificam a voz, e não o contrário. Não podemos nos descuidar das palavras, elas ilustram o corpo. Ao qual dão Vida e Movimento. Como uma trilha sonora num grande filme.
Depois do susto vem a apatia e certo acanhamento. São corretos o silêncio das respirações e as pausas. Delas podemos perscrutar o insondável. Ah, e os olhos?! Neles estão a marca, o código da invenção. Da grande invenção da espécie humana! Talvez, nunca, nunca iremos, como em dois e dois são quatro, ter certezas, todavia, neles estão o ponto para se ter alguma idéia da nossa chegada e da nossa partida...
Depois vem o global e, o insubstituível dono da voz, o corpo. É a vida. E tudo volta a ficar por um fio.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
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