Caixa de memória
Eu arranquei a cabeça do muro e vi que meus amigos também o fizeram. Os soldados, uns garotos de verdinho oliva engatilharam as armas e grunhiram:
- Querem morrer? Hein?! Hein?!
Aquilo ecoou durante anos na minha cabeça. Petrópolis, 1982. Estávamos num encontro de cineclubes, hospedados num colégio de freiras, todos um bando de malucos, em sua maioria barbudos e barulhentos (tinha um pessoal que batucava a noite toda); à noite metade daquela gente dançava sob o som dos tambores e a outra metade tentava dormir e acabava dançando também, na cama. Pelo que lembro, uma cidade tranqüila e com muito verde, e com ares de gente acostumada com outras tranqüilidades, e não aquela de cineclubistas e muitos outros “istas” esmiuçados entre eles. Ou seja, um clima, discretamente bélico, pairava nos ares bons daquela cidade de dons e pedros...
Os meninos, digamos assim, das armas apontadas para nós tremiam mais do que os abelhudos “invasores”. Os fuzis subiam e desciam trêmulos em mãos nos apontando para descer dali e sumir, sumir, antes que nos arrebentassem com suas balas! Nós que estávamos conhecendo Petrópolis, dando uma voltinha em torno de uma e outra construção interessante, fomos deparar logo com uma de muros mais ou menos baixa, toda pintada de branco aos pés de uma pequena elevação. Estávamos bem nos fundos desse imóvel, e queríamos apenas observar o que havia dentro daquele cercado que mais parecia uma bela horta de verdura fresca...
O João Luiz, espécie de guia da nossa trupe, com sua marca registrada (uma barba a La Marx) e piadista desmontou os ânimos daqueles meninos mais assustados do que nós, com uma piadinha, e assim viram logo que éramos muito parecidos com comunistas, sim, mas não os devoraríamos, pelo menos desta vez. Logo foi explicado que estávamos apenas apreciando a horta.
Um soldadinho mal humorado, um dos que parecia menos nervoso do grupo entendeu e nos aconselhou:
- Vão levar tiro na cara se andarem assim...!
Todos, apenas cineclubistas, amantes e exibidores de bons filmes, queríamos apenas conhecer a cidade e lugares interessantes, como a casa do estimado aviador, Santos Dumont, e nada mais... Mas, daí, levar um tiro, xeretando quartel de milico naquele ano, naqueles dias barulhentos de Petrópolis com um monte de gente estranha na cidade, não seria difícil, não mesmo. E verduras, mesmo no pé, são sempre muito sensíveis.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
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