O diabo loiro que chora
Tarde da noite num ônibus, em dia exato do sete do mês de março de dois mil e nove. Nenhum momento antes nem depois, exato, naquele instante da noite, rumo meu corpo e mente a Zona Leste. Havia um cara loiro e meio surrado na roupa e no olhar, surrado, surrado, olhando o vago da noite com um violão nu, quieto, nos braços...
(Depois, depois quando mais pessoas entraram no ônibus e a plateia já não era tão miúda...).
O sujeito que toca em troca de trocados de ônibus em ônibus (ainda me mato de tanto trocadilho, sô!), voz rouca e potente, sendo o próprio misto do sussurro e do grito, emprestando beleza e força a uma música popular brasileira, que no meu desentendido desses assuntos, nunca teve, nunca. Urra, urra, um branco/negro e tanto da música! Mas o meu lembrar dele em escrita aqui, nem é mesmo muito por seu som maravilhoso, sua arte jogada aos pombos magros dos coletivos soturnos de São Paulo, nas quebradas da noite... Por outro motivo, arrancado daquele, que a mim interessa apresentá-lo aqui, em som de sua voz, violão e gaita.
As periferias, nos tardes das noites, possuem um deserto nos ares, onde gemidos de vozes roucas, combinadas com balangandãs de ônibus/carroça velha puxador de capetas dos infernos perdidos, dá um som e tanto. Pensei naquele senhor albino e genial, mais gênio do que albino, e isso não tem nenhuníssima importância, me sei; mas a ele tive vontade de dedicar o ouvido por mim. Em pensamento lhe fiz isso, porque sei, sua genialidade jamais poderia nos propor coisa tão ímpar - e olha, a ele toda música é toda, redonda, completa, plena e bela. Eu também sabia, provavelmente não ouviria nunca mais esse rapaz cantando naqueles altos de horas de um sábado à noite, combinando com esse barulho balangandã de carroça dos infernos...
Mas, a minha teima em dizer desse sujeito da música, porque dele também saíam coisas desconexas, aparentemente, eu sei, mas no fundo sua loucura era a mais divina, a mais bela e pura das loucuras humanas. Dizia de quem o colocara nessa situação, digo, nesse mundo, da sua maior, a máxima, a magnânima, a sua mãe; falava dela com uma pureza e uma tristeza que já fucei todo meu repertório e palavras me escapam para fiel tradução de sentimento. Mas reproduzo aqui o literal dele, do seu dito, em boca para o meu ouvido naquele inferno de barulho:
- Minha mãe dizia: meu filho é um poço de felicidade, ele canta, sabe ser feliz, é um rapaz alegre e que alegra todo mundo. Mas, meu pessoal, meu povo, essa mulher me deixou há duas semanas, e agora já não posso ser esse poço de felicidade, porque não tenho nem casa pra morar...
Nisso não havia desconexão, tudo tinha sentido. O homem falou, falou depois voltou àquela música simples, modesta, mas em sua bocarra triste, divina, solene, grandiosa. Pausa, pequena pausa, lágrimas secas e avermelhadas saem dos olhos, tosse, se arruma com o violão na perna, assopra a gaita, respira fundo e volta:
- “Vida humana, beleza humana...”
Pausa. Recolheu, ou tentou recolher os trocados e voltou a respirar com sofreguidão (eu não disse, mas na desconexão da sua conversa havia a respiração sôfrega, difícil), como se a gaita não lhe saísse da boca e precisasse voltar com a letra da música, antes que fosse devorado por ela, devorado, devorado. Devorado.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
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