Pequenas lições
Conto 1
Fui levado ao mar, num topo, e do alto de um mirante o vi todo bicho lá embaixo, deitado, esticando-se e encolhendo-se, como se a vontade do sono não lhe deixasse, mas também não o levasse de vez à morte interina, combinada.
Lá estava o mar, estirado aos meus pés, sem aviso ou gentileza que fossem, o mar.
Estava em São Vicente, na baixada, levado por mãos femininas a ver o mar, num canto, de perto, espantado com ele que estava espantado comigo e com ela, que não me beijou na frente do deitado de água se movendo. Depois, ela, uma professora de matemática, me pegou pelas mãos e me levou até a rodoviária, de onde saiam ônibus para São Paulo...
E eu li, pude ler na sua testa pela última vez: as nossas contas não vão bater com as contas do mar batendo. Assim, nas pedras.
Conto 2
Entrei no metrô, peguei o último vagão, ou melhor, fui pego por ele e lá me acomodei. Entraram duas pessoas na estação seguinte, e, visivelmente, uma delas devia ser pessoa do mato, um caipira, segundo o digo do ditado das leis das bocas dos comuns e dos comungados.
E eu posso chamá-lo porque o sou em corpo, alma e vida tão igual caipira como qualquer outro, pra isso bastando apenas algumas semanas de convívio junto daqueles jeitos e trejeitos para novamente ser confundido com outro. Quem nasce caipira entre eles de iguais nunca deixará de sê-lo mesmo nos adversos das maiores adversidades. Salve as diferenças!
(Para não esticar a vida da onça, diante da mira, vamos ao esticado do fato naquele mais um dia de metropolitano em minha vida.)
O tal do meu igual, o caipira, um senhor de simpatia indescritível, comentando sobre cuidados e conselhos da que devia ser sua companheira, e coisa e coisa disse ao outro:
- Pois é, a minha Ditadita acha que cidade é muito perigoso da gente se perder... Mas eu digo pra ela, não canso de falar: mulher, o pior se fosse o dos contrários; morando a gente na cidade grande e tivesse que se abestalhar de ir passear no meio do mato e lá se perdesse...iiii,aí, sim! Olha, teria muita preocupação. Imagina, perguntar pra quem o onde fica o onde do onde e coisa e tal! Jamais, ninguém, nunca iria achar viv´alma pra nos responder de endereço qualquer que fosse. Eu, hein!
O outro, e eu de observador (quase oculto) concordamos, sem tirar vírgula do referido acaso, se fosse. E ele, claro, preciso na locução:
- Agora, cidade é diferente, não sou mudo, eu falo, pergunto e as pessoas respondem, ô, se não!
O cara, o seu parceiro riu, riram juntos, e eu também, disfarçadamente ri, ri muito. Como não tinha pensado nisso antes, ora. Um abusado esse senhor caipira.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
2 comentários:
Cacá: adorei o homem que acha mais perigoso andar no mato. E mato tem placa com nome de rua? Pois se em muitas favelas num tem e a gente se perde, imagina no mato. Perguntar pro pé de araçá: viu uma menina de vestido rodado amarelo que nem um girassol? E o pé de araçá nervoso querendo responder, e num achando como, tremendo as folhas, mas se folhas num falam...Perguntar ao rio: cê viu um menino passar por aqui? O rio vai dizer que o Dito se afogou? que ele num sabia que alguém iria procurar por ele? que ele tinha parente, aderente ou amigo? Rio num fala...é, Cacá. O homem tá certíssimo, na cidade a gente tem placa, tem boca, tem ouvido que escuta informação, tem até celular...Alguns até GPS...
E num é que esse homem é um sábio, ainda que não conheça as novas regras da ortografia que vão fazer muito editor ganhar dinheiro com as reedições...
Se quiser, põe no teu Blog meu comentário...
Beijos
riso
Bom dia, Cacá
Passei apenas para dizer e deixar registrado, como marca feminina..., "Que bela Metade de Conto"!
Grande Beijo
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