Meio século pelos vãos: perguntas
Hoje acordei mais diabo do que deus, negociei eu mesmo, comigo, uma trégua na imensa contenda em que estou até o talo da torre do meu pescoço com meus minguados botões... Deixei o meu lado gazela escondido e pensei no leão que também posso ser, e por enquanto não vou morrer por aí atrás de mim, numa caçada implacável. A mesmíssima pomba branca que passeia na praça 14 Biz, entre ratos e lixos escandalosos, perto de onde moro, agora vive querendo sentar na palma da minha cabeça e fazer o que ninguém ousa.
- Vá de retro satânica besta, ave infernal dos baixos viadutos!
Estou, vivo, num domingo de páscoa, passeando sob o sol que espirra das sobras dos prédios e dos tolos viadutos que aos tais dos carros conduzem nessa cidade. E vão aonde, esses carros todos, me pergunto no soçobrado da minha paciência? Ao mercado não pode ser, ao aeroporto também não, às fábricas também não (não haveria sentido), pois hoje é feriado.
Por esses dias, desde o último vinte e sete de março, tenho comigo mais perguntas, perguntas, perguntas, perguntas, perguntas do que certezas, oras!
Estou a meio século do eu mesmo na barriga.
E não me venha agora esse pombo confundir-me com fio de luz, ou poste que seja, não me venha, ave!
Já me arrastei pelos mundos dos becos, das feridas miúdas e graúdas, forjei batalhas a me fingir Ulisses, costurei bocas para beijos inteiros, em pedaços, amei trevas para me ter luz, fui e possuí de quatro o limbo como o maior egocêntrico dos amantes, me arrastei entre meretrizes que não se vendem à prestação; e vez ou outra me desfilei, tácito e garboso, bem ao lado de Deus, sem ver-me o Diabo que era o meu corpo pagão e cru... Fui acorrentado, solto, preso, solto, preso como um navio de âncoras e novamente solto, preso, solto...
Pois, pois, sempre pude olhar pelos vãos, porque deles sempre vem os raios que me soltam das bobas trevas das irrelevâncias desse mundo. Arre.
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