A incrível história de dois séculos da minha vizinha (uma gata)
Boa vizinhança também é cultura. Digo porque uma minha vizinha de prédio e de andar, do 1º, onde moro, possui uma bichana de história bastante curiosa. A raça da gata não saberia direito qual, mas vira-lata não é... Esses bichos de origem (digo, que veio não sei de onde, trazidos por não sei quem) sempre são mais exóticos e logo se vê a distinção. Dona Vizinha - para lhe resguardar o anonimato, não por pedido a mim que fosse, mas algo de minha discrição mesmo, voluntária – já me garantiu diversas vezes sobre a procedência desse animal. Afirmação de tamanha convicção que não deixa farpas de dúvida. Eu nunca, jamais, também suspeitaria de imagem de mulher tão austera e sóbria como a Dona Vizinha. A idade? Não quero entrar aí, mas nova já foi há muito tempo e isso basta.
A bichana, segundo sua dona, descende de um casal de gatos que pertenceu à dona Carlota Joaquina... Diz mais, a digníssima senhora: que esses bichanos de dona Carlota vieram da Rússia, comprados lá, numa feira, por um mercador de Constantinopla que por sua vez os venderam a um outro mercador de Veneza, que por sua vez presenteara dona Princesa, quando esta ainda habitava o reino de Espanha.
Na fuga da coroa real portuguesa para o Brasil, esses gatinhos foram aconchegados no mesmo navio que trazia todo o material da Imprensa Régia, e no momento do desembarque da carga, no Rio de Janeiro, o responsável pelo MEDUSA (o navio da I.R.), alertado contra a sujeira provocada pelos bichanos durante a viagem, que defecaram em todas as caixas que abrigavam os tipos dos prelos. O homem, cujo nome Dona Vizinha não lembrou, teve o maior chilique quando deparou com o material da Imprensa todo daquele jeito. E os gatos foram seriamente ameaçados, salvos graças à intervenção direta de Dona Carlota que soube pouco antes da matança anunciada.
Esse imbróglio deixou o maior clima na corte, e o sujeito da imprensa (digo, o homem responsável pelo navio) teve ainda que se explicar ao filho de Maria, nos mínimos detalhes. Tanto o excremento em peças tão fundamentais para fincar pedras em novo reino - o que soava desleixo – como a tentativa da chacina aos felinos de Dona Bourbon.
Abafamentos nesse tempo, imagino, não era mesmo preciso, pois pernas e línguas, a Imprensa propriamente dita, ainda nem tinha. E se tivesse, naquele momento, o odor não poderia ser dos melhores.
Mas voltando ao presente, porque dele não dá para se despregar, minhas sondagens a respeito de gata tão nobre, como se nota, daria um romance e tanto, como tudo na vida dá. A depender de tempo, paciência e, claro, competência para com a empresa. Mas como meu tempo ainda é escasso e não há modos de me manter pesquisando e escrevendo, vou me contentar com esse modesto resumo. Quanto à vizinha, vou tentar não perdê-la de vista, torcendo para que tenha muita saúde e continue a contar histórias tão incríveis como essa. Incrível.
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 5 anos
2 comentários:
Caraca! nossa Cacá, agora vc se superou mesmo!
Adorei o texto! magnífico!
E viva os gatos! viva! viva!
Beijos
Vânia Feitosa
Descobri porque voce some nos finais de semana..nao consigo te achar...fica bolando esses textos incriveis..rs
Amei Amigo Gato!
beijos
Lu
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