O amor bem mais feliz, mais feliz que das outras vezes que foi
Quando olhou-a pela primeira vez, viu seu amor sangrar na agulha, e os lábios levemente tortos por um descuido qualquer tornava-a mais e mais angelical. Tão angelical que se supersticioso fosse teria medo de se aproximar daquela beleza insana, maluca, e sabe-se lá adjetivo por no nisso dela de bela tão assim pra ele: um ser simples, calado, ensimesmado em sua pluma de nuvem: uma alma virgem, um sacramentado ser em plena era das altas tecnologias e os maiores avanços do homem moderno pós?!
Se aproximou sem querer, talvez, apertado pelo povo que o empurrava dentro do vai-e-vem do vagão - como se fosse num qualquer custo - e meteu seus olhos assustados, medrosos, medonhos, tímidos dentro dos olhos acesos dela - duas estrelas esverdeadas, como dois pingos de mata atlântica - e disse:
- Esse olhar, olhar... Ele pensou isto, não disse.
Bem, o seu muito em dizer um pro outro, dizendo em língua de gente não foi nada dito, mas houve mais que diálogo, houve, mais que isso, houve amor, houve paixão, felicidade plena num ato nunca visto (o que ninguém viu ou percebeu mesmo, mas se visto fosse, diriam que igual nunca teve. Nunca). Dito em palavra com palavra não foi, foi um dizer em pensar, transmitido com o volume do silêncio esticado no maior do momento dentro do barulho de um trem sacolejante... As pessoas em volta não existiam, nem aperto, nem nada. Somente eles ali, diante do um do outro em dois em tão somente neles, num entre si, fornicando-se, tacitamente, no meio de uma manhã de sexta-feira, em São Paulo, no caminho de ferro, do Grajaú a Osasco.
Pinheiros seria a vez dela descer, uma depois dele. E desceu. Desceram.
Naquele ato silencioso, apaixonado, terno, maravilhoso o diálogo mudo, surdo, e pleno, pleno daqueles uns dois, encheu a manhã de sexta-feira de sol e poluição de felicidade. E o rio que desce na beira da linha indo também para as bandas de Osasco, foi bem mais feliz, mais feliz, mais feliz que das outras vezes que foi. E foi
Moacyr Scliar: Ciumento de carteirinha
Há 4 anos
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